Música Como Uma Arma

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A Conflitante Simbiose do Punk Rock e o Anarquismo

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De Victor Jara a Racionais MC’s, a música tem desempenhado um papel fundamental em inúmeras culturas de resistência. Uma grande porção daqueles que participaram do movimento anarquista entre 1978 e 2010 fizeram parte da contracultura punk em algum momento; de fato, muitos foram expostos aos ideais anarquistas através do punk. Isso pode ter sido meramente circunstancial: talvez os mesmos traços que fizeram com que as pessoas procurassem o anarquismo também as tenham predisposto a gostar de música agressiva e produzida de forma independente. Mas também se pode argumentar que a música que empurra as fronteiras estéticas e culturais consegue expor ouvintes a um espectro mais amplo de possibilidades em outras esferas da vida.

Porém, no momento em que o anarquismo estava se consolidando nas Américas durante a virada do século, a atividade radical nas cenas punks locais começaram a declinar. Agora que não é possível depender da subcultura punk1 como uma incubadora para anarquistas, devemos compreender como e porque ela teve esse papel por trinta anos.


Essa é uma versão revisada de um texto originalmente publicado na edição 7 da nossa revista Rolling Thunder. Você também pode baixar gratuitamente a maioria dos álbuns que a CrimethInc. lançou desde 1996.

Prefácio: Quando o Punk Era uma Base de Recrutamento para o Anarquismo

“As pessoas falam em ‘pregar para os convertidos’ – mas quem diabos os converteu?”

-Penny Rimbaud, do grupo Crass

Há inúmeras razões para não atrelar o destino do movimento revolucionário à sorte de uma cena musical. Ao entrar no anarquismo através do punk, as pessoas costumavam abordar a atividade anarquista da mesma forma que participavam em uma subcultura jovem. Isso contribuiu para um meio anarquista caracterizado pelo consumismo ao invés da iniciativa, foco em identidade ao invés de mudança de dinâmicas, atividades limitadas ao tempo de lazer dos participantes, conflitos ideológicos que se resumem a disputas por gostos pessoais e uma orientação para a juventude que tornou o movimento irrelevante no início da vida adulta.

No entanto, durante as décadas de reação global que sucederam os anos 1960, o punk underground foi um dos principais catalisadores para o renascimento do anarquismo. Se não fosse pelo punk, anticapitalistas em muitas partes do mundo estariam escolhendo entre formas obsoletas de socialismo autoritário.

Crass: o início do anarquismo no punk.

É fato que o show punk médio era tão dominado pelo patriarcado como uma sala de aula universitária. Todas as hierarquias, economia e dinâmicas de poder da sociedade capitalista estavam presentes no microcosmo. E o anarquismo não era o único credo que utilizava esse palanque: diversas ideologias competiam no meio punk, do Neo-Nazismo ao Cristianismo e a “consciência” de Krishna. Mas tudo isso só torna mais marcante que as ideias anarquistas tenham se saído tão bem, considerando que elas ganharam menos aquisições em outros círculos naquela época.

Podemos atribuir esse sucesso a fatores estruturais. Muitos anos antes do acesso a internet se tornar difundido, a cena punk faça-você-mesma (ou do-it-yourself/DIY) ofereceu um raro modelo para a atividade horizontal e participativa. Organizando seus próprios interesses em redes descentralizadas, participantes experimentaram em primeira mão os benefícios de uma autonomia sem líderes. *Uma vez que você mesmo marcava uma turnê, deixando de lado o monopólio de casas de show comerciais, gravadoras, e produtores de turnê, ficava fácil imaginar a organização de outros aspectos da sua vida de forma semelhante. Ao mesmo tempo, em uma cultura de juventude fundada na oposição à autoridade, haviam menos mecanismos integrados para suprimir ideias radicais.

Também é possível que os valores anarquistas tenham enraizado na cena punk precisamente por serem tão marginalizados em outros locais: em uma era onde ideias radicais eram empurradas para a periferia, as subculturas periféricas estavam repletas delas. Isso pode criar um ciclo de feedback que mantém essas ideias marginais, já que não são associadas às iniciativas populares ou bem-sucedidas. A romantização da obscuridade e do fracasso que tornou o punk um terreno hospitaleiro para os ideais revolucionários nos anos 1980, não encorajou seus novos partidários a lutar para vencer fora do gueto punk.

Mas o exílio auto imposto da comunidade punk também foi um efetivo mecanismo de defesa durante uma era de cooptação capitalista. A cena punk ajudou a manter as ideias anarquistas vivas entre os anos 70 e o século XXI, da mesma forma que monastérios preservaram a ciência e literatura durante a Idade das Trevas. Embora as exigências e influência da economia capitalista recriaram os mesmos desequilíbrios de poder e materialismo que os punks esperavam escapar – limitando a crítica punk do capitalismo a uma variante da máxima liberal “compre local” – o underground anticapitalista faça-você-mesma demonstrou uma notável resiliência. Em um ciclo que se tornou recorrente, cada geração expandiu até que gravadoras, movidas pelo lucro, retiraram do topo as bandas apolíticas mais populares, preparando o palco para o retorno à independência e experimentação. Então, a cena punk forneceu à indústria musical um terreno livre para testes e desenvolvimento para novas bandas e tendências, mas esse processo também serviu para limpar a cena dos parasitas que eram levados ao palco do mainstream.

Longe dos olheiros da MTV, dos selos independentes concorrentes e do consumismo alternativo, você podia achar algo lindo e livre no coração do underground faça-você-mesma. Na melhor das hipóteses, era um espaço onde os papéis de protagonista e audiência se tornaram intercambiáveis e a ordem da cultura dominante era abalada.

Vamos contrastar isso com os modelos de atividade anarquista que estão atualmente em voga. Enquanto o ativismo político geralmente foca em questões fora das vidas cotidianas dos participantes, e assim tende a custar mais energia do que gera, o punk do faça-você-mesma era basicamente guiada pelo prazer, oferecendo atividades que eram gratificantes em si mesmas. Embora isso possa parecer fútil, a sociabilidade e afirmação são tão essenciais quanto alimento e moradia. Em algumas partes do mundo, a cena punk era significantemente mais das classes baixas e trabalhadoras, do que o atual meio anarquista; isso pode indicar que ele atendia às necessidades reais, ao invés de atender à propensão da classe média para a abstração. Em contraste aos protestos, que muitas vezes eram criticados como reativos, o punk no seus melhores momentos enfatizou a criatividade, demonstrando uma alternativa concreta. Sim, era voltado à juventude, mas como os jovens estão entre os mais potencialmente rebeldes e abertos a novas ideias, isso pode ser visto como uma vantagem. Ao focar-se na auto expressão, o punk possibilitou que participantes desenvolvessem sua confiança e experiência em esforços de baixo risco, ao mesmo tempo que produziam uma enorme quantidade de trabalhos artísticos que se desdobravam em materiais de divulgação; como um movimento cultural descentralizado, ele se reproduziu organicamente e não através de esforços institucionais.

Se tentássemos inventar um paralelo cultural para o ativismo de hoje que pudesse repor energia e propagar valores anarquistas entre os jovens, não faríamos melhor. Só a cultura “Meme” tem muito menos a recomendá-lo.

Anarquistas costumam reclamar que, na verdade, a cena punk era cheia de pessoas sem respeito algum aos valores anarquistas. Infelizmente, se você quer introduzir novas pessoas ao anarquismo, você terá que lidar com muitas pessoas que não são anarquistas. Isso é especificamente verdade nos Estados Unidos, onde pouquíssimas pessoas crescem com qualquer exposição a ideias radicais. Na Itália, em contrapartida, os punks anarquistas poderiam dizer “Punk é igual anarquia com guitarras e baterias; qualquer coisa a menos é submissão”.

Há muito que ser dito sobre operar em ambientes diversos, onde ideias de indivíduos e a cultura que os conecta está ainda em evolução. Como a cena punk não estava ligada a nenhum panorama ideológico radical, ela ofereceu um espaço mais fértil para experimentação do que meios radicais muito mais explícitos. Se essa lição fosse aplicada em outro lugar – se anarquistas iniciassem projetos influentes em outros meios politicamente diversos, horizontais e baseados em redes – as ideias anarquistas poderiam ter se espalhado ainda mais.

Punk em Singapura na década de 1990.

Embora os críticos frequentemente acusassem a cena punk de ser nada mais que um parque de diversões para consumidores privilegiados do Primeiro Mundo, o punk foi parte integrante da ressurgência de ideias anarquistas bem distantes dos EUA e Europa. Enquanto o punk, discutivelmente, surgiu no Reino Unido e nos EUA, grande parte da atividade do punk underground global surgiu na América Latina e na orla do Pacífico, sem mencionar a África do Sul, Israel, Austrália, Nova Zelândia e o antigo bloco soviético. Em muitas dessas nações, o punk ainda é muito mais associado a políticas radicais do que tem sido nos Estados Unidos; o punk foi especificamente instrumental em na revitalização anarquista em contextos nos quais não havia uma alternativa radical à hegemonia marxista. Seria instrutivo examinar porque o punk se enraizou em países como o Brasil, Malásia e as Filipinas, mas não na Índia ou na maioria das nações de língua árabe, e estudar como isso correlaciona com a expansão de ideias anarquistas nos últimos trinta anos.

Punk e Resistência: Uma Trajetória

A primeira grande onda de punk politizado pode ser rastreado até a banda britânica Crass, que se inspirou no dadaísmo, elementos do movimento hippie e outras tradições de vanguarda para moldar o punk rock primitivo em uma forma de agitprop cultural. Décadas depois, um visitante no Reino Unido poderia ainda encontrar pequenos círculos de anarcopunks de meia idade que foram politizados pelo Crass ainda participando da mesma cena independente de música underground e repetindo as mesmas discussões sobre The Clash sempre que ficavam bêbados.

Trecho da entrevista de Penny Rimbaud (Crass) com a Imprensa Marginal, falando sobre as promessas (e a falta) de futuro do início do punk. Ative as legendas.

Nos Estados Unidos e, de forma semelhante, no Brasil, quase uma década depois, o DIY underground da metade da década de 90 contribuiu para um aumento no ativismo pelos direitos animais e ajudou a abrir o caminho para o movimento antiglobalização. Revistas como a Profane Existence introduziram perspectivas radicais em tudo desde feminismo à armas de fogo; comunidades DIY se desenvolveram de forma que todos escreviam uma zine, tocavam numa banda ou organizaram shows no porão; até nas cenas mais masculinas, toda banda conversava com público entre as canções – mesmo que somente, em alguns casos, para incitar as pessoas a dançar mais violentamente.

Edição final da primeira geração da revista Profane Existance, incluindo cobertura da solidariedade do prisioneiro negro Mumia Abu-Jamal.

Na véspera da estreia do movimento antiglobalização2, centenas de punks se reuniram na Filadélfia, no final de abril de 1999, para o Millions for Mumia, uma marcha para dissuadir o estado da Pennsylvania de executar Mumia Abu-Jamal. Para muitos, essa foi a primeira vez em que viajaram fora da cidade para protestar; e também, embora sem grandes conflitos com a polícia, foi a primeira vez que a maioria deles se organizaram publicamente em máscaras pretas e moletons. Esse momento, quando punks politizados perceberam que eles estavam em número suficiente para constituir uma força social, abriu caminho para tudo o que veio depois; após um ano, muitos dos participantes lutaram lado a lado em protestos contra o reuniões do FMI e do Banco Mundial em abril de 2000 em Washington, DC. Na noite seguinte à marcha, uma multidão se reuniu no Stalag 13, uma casa de shows DIY da região, para ver a banda His Hero Is Gone; havia um sentimento no ar que não havia uma real distinção entre identidade subcultural e atividade política. Nesse mesmo ano, a Primate Freedom Tour realizou uma síntese de música punk e ativismo radical, usando uma série de shows pelo país para promover protestos regionais contra laboratórios que realizavam experimentos em primatas.

O boom do DIY na metade da década de 1990 alimentou o impulso do movimento antiglobalização. Aqueles que estavam perto ou faziam parte de bandas punk já entendiam como um grupo de afinidade funcionava; agir em redes descentralizadas e coordenar ações autônomas surgiu naturalmente. Era fácil para pessoas que viajavam rotineiramente pelo país se engajando em tumultuados eventos subculturais, começarem a participar de protestos anticapitalistas combativos. O chamado “summit-hopping”, encontros massivos de multidões em protestos contra cúpulas financeiras e governamentais, ofereceu os mesmos incentivos do punk – risco, emoção, união, oportunidades para usar a criatividade e combater injustiças – junto da atração adicional sentir-se nas linhas de frente da história.

No período que precedeu essa explosão de atividade política, a música e cultura punk se tornou mais experimental conforme os punks procuravam combinar uma estética ousada com uma retórica radical. Sempre houve uma tensão no punk entre os aspectos de arte folclórica do artesanato – progressões musicais de três acordes e artes feitas a mão – e o desejo de inovar e desafiar. Como a subcultura oferecia aos participantes concepções mais amplas sobre o que poderia ser possível, eles começaram a tocar música e fazer exigências que se esforçavam contra as limitações do meio. Por um lado, música inovadora poderia tornar ideias radicais mais convincentes: após uma estranha, mas estimulante experiência, uma ouvinte pode estar mais propensa a acreditar que um mundo totalmente diferente seria possível. Por outro lado, essa experimentação contribuiu para a fragmentação da subcultura punk, pois as tradições foram abandonadas e os padrões de musicalidade e criatividade alcançaram níveis proibitivos.

Do underground que não faz concessões…

Fenômenos voláteis eventualmente penetram em os elementos constituintes do punk e se estabilizam por ali. A banda sueca Refused, por exemplo, que já havia combinado hardcore, techno, jazz e música clássica em seu último álbum, rompeu em 1998 e os membros acabaram formando bandas muito mais tradicionais de acordo com seus gostos individuais – nenhum deles tão interessante quanto o Refused. A partir do momento em que havia um movimento anarquista para a maioria dos punks politizados se juntarem, um processo similar aconteceu dentro da cena punk. Até 1999, punks politizados tendiam permanecer no DIY underground, pois geralmente não existia outro meio revolucionário maior; tocar música e escrever zines eram vistos como atividade política, apesar dos estreitos horizontes da subcultura. Tudo isso mudou depois dos protestos da OMC em 1999, que deu início a uma era de infinitas manifestações e organização política. A maioria das pessoas que levavam sua política a sério mudou o foco para longe da cena punk. Enquanto isso, aqueles envolvidos no punk somente pela música e pelo visual permaneceram e lideraram uma reação contra o engajamento político de todos os tipos. Enquanto outros focavam em convergências anarquistas, black blocs e processos de responsabilização, os reacionários eram aqueles ainda apenas organizando shows e gravando álbuns. Assim, eles deram o tom para cena punk apolítica e conservadora musicalmente do século XXI.

Entre 1998 e 2002, quase todas as bandas que ajudaram a politizar o punk underground acabaram, e muitas revistas influentes encerraram suas publicações. Em maio de 2002, quando os anarquistas de Boston realizaram o Festival del Pueblo, uma ruptura se desenvolveu entre a estética e elementos políticos da subcultura, evidente nas tensões entre punks que só iam aos shows e anarquistas em busca de estabelecer um movimento revolucionário. Para citar um único exemplo, a pessoa que organizou o show do His Hero Is Gone depois do Millions for Mumia e depois exerceu papel na organização anarquista contra a Convenção Nacional Republicana de 2000, veio se apresentar com sua banda, mas voltou para casa depois ao invés de ir ao protesto marcado para o dia seguinte.

Alguns anos depois, a ruptura entre o punk e anarquismo estava completa. Até o Against Me!, progenitores da reação folk punk contra a estagnação da cena anarcopunk, abandonou o movimento DIY e fugiu de suas antigas políticas anarquistas. From Ashes Rise, que eram colegas do radical e independente His Hero Is Gone, assinaram com uma gravadora maior e gravaram um último álbum com músicas sobre guerra nuclear – uma regressão à nostalgia dos anos 80, ainda mais absurda no meio da Guerra do Iraque – antes da banda se desfazer. O punk – pelo menos para essa geração – havia atingido o fim de sua trajetória como uma força de mudança social.

…à vanguarda da cooptação.

Tecnologia, Legitimidade e Acessibilidade

Voltemos ao ressurgimento do folk punk logo após a virada do século. His Hero Is Gone havia sido uma das primeiras bandas DIY a passar de alto falantes simples para gabinetes duplos e em poucos anos todas as bandas que queriam ser levadas a sério, fariam o mesmo. Isso levou a uma corrida armamentista e uma forma de inflação estética: nenhum volume era alto o suficiente, nenhuma gravação poderosa o suficiente, nenhum equipamento caro o suficiente3. O folk punk foi uma reação a isso: um formato acessível, barato e conscientemente não refinado. Mesmo nunca alcançando a popularidade do punk baseado cheio de equipamentos; de modo revelador a emblemática banda Against Me! aderiu à instrumentação de rock padrão no curso de sua mudança para o carreirismo comercial.

Da mesma forma, alguém poderia perguntar o porque, de todos os formatos que floresceram na cena DIY underground, nunca houve um grupo de teatro viajante. À primeira vista, o teatro seria um meio para artistas independentes com acesso limitado a recursos. Um grupo de teatro poderia viajar sem equipamento caro ou necessidade de um veículo grande; espetáculos poderiam ser feitos praticamente em qualquer lugar. De Dario Fo à trupe Living Theater… teatro radical que teve uma história rica por todo os EUA na época. Shows de marionetes eram praticamente um clichê no circuito DIY – então por que não o teatro?

Isso indica um materialismo persistente na cultura DIY. O equipamento, seja um palco de marionetes de papelão ou dez mil dólares em amplificadores, conferiu a legitimidade de que tanto os artistas quanto o público almejavam. “Vejam,” desertores da classe trabalhadora poderiam dizer a si mesmos, apontando para uma van enferrujada cheia de equipamentos que os custou anos de salário, “somos uma banda de verdade!”

Na sociedade capitalista, atividades são angariam de significado principalmente através do mercado e da mídia. O rock era originalmente uma arte da classe trabalhadora que passou a ser cultivada por capitalistas como árvores de dinheiro; o significado que as pessoas encontram nisso é real o suficiente, mas é gerado através de forças muito além de seu controle. Rockstars são importantes precisamente porque nem todo mundo pode ser um. Paradoxalmente, os punks pegaram o formato do rock como uma forma de afirmar sua própria importância, até mesmo no processo de se rebelar contra às corporações que os introduziram nesse meio.

Podemos interpretar a ascensão e queda do punk DIY como o “soluço” histórico durante o qual lançamento de álbuns e tecnologias de impressão se tornaram acessíveis ao público geral. Crass foi uma das primeiras bandas a lançar seus próprios discos; isso era empolgante pois estavam usando tecnologias que estavam amplamente indisponíveis para a classe trabalhadora. Dentro de algumas décadas, porém, esse desenvolvimento se tornou discutível pelos avanços tecnológicos e super-saturação. A partir do momento que qualquer pessoa podia lançar um disco, isso não era mais tão impactante – não era “real” no sentido de que tudo na televisão é “real” enquanto as nossas vidas parecem irreais e insignificantes.

A cena punk se fundou nas tensões criadas pelo acesso limitado aos meios musicais de produção, com a chegada das tecnologias que estenderam esse acesso a todos, sua estrutura colapsou. A internet substituiu as cuidadosamente construídas redes de distribuição e cultura de zines pelo imediatismo do download de música e blogs (em mais tarde, mídias sociais e aplicativos de streaming); alguns desses ocorrendo em estruturas genuinamente descentralizadas, mas a maioria era baseada em imitações corporativas como o myspace.com. A proliferação desta última foi particularmente irônica, no sentido de que o underground DIY havia sido uma área de testes para esse tipo de sistemas baseados em rede que a internet acabou universalizando.

Quando toda banda de adolescentes de classe média poderia ter sua própria página web e um estúdio de gravação caseiro, o desencanto que se seguiu revelou quão banal a premissa do estrelato do rock têm sido. De certa forma, é saudável ser despojado das ilusões de alguém, especialmente de um de seus inimigos. Por outro lado, se nada tomar seu lugar, isso somente drena ainda mais o mundo de qualquer significado – e o niilismo puro ajuda a manter o status quo.

O punk foi bem empolgante por décadas pois, em contraste com o rock corporativo, ele oferecia uma experiência relativamente não mediada: você poderia conhecer seus músicos favoritos, dançar e interagir fora das prescrições de uma sociedade repressiva, até mesmo formar sua própria banda e refazer a subcultura em si. Centenas de pessoas assistiam aos shows do Black Flag porque eles ofereciam uma experiência genuinamente diferente de qualquer coisa que o capitalismo corporativo tinha a disponibilizar. Mas assim que a internet fez com que qualquer banda se tornasse sua própria agência de divulgação e o YouTube tornou possível que todos aparecessem em algo equivalente à MTV, a música independente se tornou tão mediada quanto a música corporativa, e nem um pouco menos entediante.

Aprendendo com o Punk

A morte do punk já foi anunciada prematuramente inúmeras vezes por décadas. O próprio Penny Rimbaud em sua passagem pelo Brasil em 2017, ao ser perguntado pela enésima vez sobre “como vai a cena punk britânica”, disse que não sabia e que sua banda anunciava que o punk havia morrido já em 19774. Mas a questão não é prever o futuro ou a morte de subculturas e sim como criar comunidades anárquicas e força social. Se o punk tiver morrido, precisamos seguir criando vários outros lugares paras pessoas conhecerem o anarquismo; e fazer isso ainda melhor que o punk se queremos alcançar uma revolução.

A longa jornada do punk como terreno fértil para o anarquismo mostra quanto temos a ganhar com atividades sociais que são prazerosas e criativas. Ao incentivar correntes culturais orgânicas, podemos criar movimentos sociais que não dependem de instituições, mas são naturalmente autorreprodutoras. Idealmente, elas deveriam ser subversivas, mas sem causar repressão imediata – é importante que as linhas sejam traçadas, mas as participantes devem ter tempo suficiente para passar pelo processo evolucionário antes da polícia chegar com seus cassetetes. Um espaço sustentável que nutre comunidades de resistência à longo prazo pode, em última instância, contribuir mais para a luta militante do que o tipo de insurreição impaciente que já começa com confronto, ao invés de ir construindo até chegar nele.

Por mais que o punk tenha sido descartado como algo isolado, o sucesso do anarcopunk demonstra quão eficaz pode ser para anarquistas investirem em um alcance contínuo num círculo de escala possível de manejar. Melhor ainda se for um espaço politicamente diverso, onde debates e mudanças dinâmicas podem se manifestar e novas pessoas possam encontrar ideias radicais.

Ao mesmo tempo, é paralisante para um movimento social que pretende transformar toda a vida estar associado a uma única subcultura. Aprendendo com anos de organização anarquista enraizada na cena punk, podemos ver a importância de criar espaços que juntam pessoas de várias origens em um mesmo patamar. Da mesma forma, podemos aprender com os fatores que tanto produziram quanto aleijaram o punk, como a relação de amor e ódio com o estrelato do rock. Canalizar os desejos promovidos pela sociedade capitalista em movimentos de resistência, pode produzir um crescimento rápido, mas também falhas fatais que só surgem à tona com o tempo.

Hoje, no movimento anarquista, às vezes sentimos falta do espírito dionisíaco que caracterizou a cena hardcore punk underground no seu auge: o coletivo, experiência encarnada em uma liberdade perigosa. Isso é como o punk pode nos inspirar em nossos experimentos anarquistas do hoje e do amanhã: como uma saída transformadora para a raiva, a dor e a alegria, um modelo positivo de união e autodeterminação em nossas relações sociais, um exemplo de como o impulso destrutivo pode também ser criativo – e vice versa.

  1. O termo “punk” tem sido usado para descrever uma ampla gama de fenômenos nos últimos 45 anos. Nessa análise, se refere às redes sociais e culturais associadas com o faça-você-mesma underground, não com algum estilo específico de música ou moda. 

  2. No dia 18 de junho de 1999, um dia de ação global que coincidiu com a 25ª cúpula do G8, Londres foi fechada por um “Carnaval Contra o Capitalismo” (“Carnival Against Capitalism”)do Reclaim the Streets, que resultou em grandes confrontos. A cobertura jornalística independente do evento antecipou a rede Indymedia, conhecida no Brasil como Centro de Mídias Independente, que foi formada durante as manifestações históricas contra a cúpula da OMC em Seattle, cinco meses depois, e anunciou uma nova era de organização anti-capitalista, revolucionando a internet, criando espaços para que pessoas subissem conteúdos antes de qualquer mídia social corporativa das décadas seguintes. 

  3. Qualquer pessoa familiarizada com o funcionamento interno da indústria musical sabe que poucas casas de show, menos gravadoras e quase nenhum músico faz dinheiro com seus próprios esforços. Então para onde todo esse dinheiro vai? Talvez para os fabricantes de equipamentos. Você pode encontrar incontáveis amplificadores usados que “nunca deixaram o porão” à venda – como de costume, capitalistas nos vendem sonhos impossíveis, depois lucram nas nossas tentativas de realizá-los. 

  4. Durante um show de uma banda punk no festival que Penny Rimbaud participava no litoral paulista, um dos editores desse artigo perguntou o que ele achava do som. A banda tocava um “d-beat” (uma das fórmulas mais tradicionais do hardcore-punk) sem muito o que acrescentar. Penny respondeu: “Até hoje isso? Tem exatos quarenta anos que vi isso e até hoje está a mesma coisa? O punk não era pra quebrar regras e inventar coisas novas? Qual é o ponto em ficar repetindo infinitamente uma fórmula?”